Lauris Rocha – Rios de Notícias
MANAUS (AM) – No Dia Internacional da Mulher, 8/3, o Portal RIOS DE NOTÍCIAS conversou, com exclusividade, com a titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher (DECCM) Centro-Sul, delegada Patrícia Leão sobre violência contra as mulheres, incluindo o aumento de casos de feminicídio. “A mulher, às vezes, demora tanto tempo para procurar ajuda porque nem ela mesma se vê como vítima”, destacou ela.
O feminicídio é o assassinato de uma mulher em contexto de violência doméstica, familiar ou motivado por discriminação de gênero. No Amazonas em 2023, foram registrados pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), 23 casos de feminicídio, número que aumentou em 2024 para 30 mortes. Na capital no mesmo período de 11 mulheres assassinadas o número cresceu para 16 mortes. A arma branca foi o meio mais usado nos crimes.
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À frente da DECCM, há um ano, a delegada Patrícia Leão garante suporte e proteção na luta pelos direitos das mulheres. Nesta entrevista exclusiva, ela conta qual caso de feminicídio foi mais impactante para ela, o perfil das vítimas e dos agressores, os procedimentos de denúncia na delegacia e os avanços no combate a todo tipo de violência contra a mulher. Confira a seguir.
RIOS DE NOTÍCIAS: Inúmeros fatores estão ligados ao aumento dos casos de feminicídio no Amazonas. O que faz a mulher permanecer presa ao ciclo de violência?
Patrícia Leão: Na maioria dos casos, há uma dependência econômica, muitas vezes fruto do machismo e do patriarcado, onde o homem impede a mulher de estudar e trabalhar. Isso faz com que ela tema perder o sustento dos filhos e até a guarda deles, por não ter condições financeiras para mantê-los, o que a leva a permanecer na relação abusiva. O primeiro passo para a vítima é reconhecer que está sendo violentada, o que nem sempre é fácil. Muitas mulheres demoram a procurar ajuda porque não se veem como vítimas.
RIOS DE NOTÍCIAS: Delegada, qual caso de feminicídio mais chamou sua atenção?
Patrícia Leão: Nos casos de feminicídio, os autores são todos conhecidos. Não tem nenhuma situação com a autoria desconhecida, geralmente é o companheiro, o marido que mata a mulher. O caso que me chamou mais atenção, desde que eu comecei a trabalhar aqui na delegacia, foi uma situação que aconteceu em junho de 2024, onde o agressor foi preso em flagrante por tentativa de feminicídio, após ele conseguir a liberdade, ameaçou voltar para matá-la, matar a filhinha deles de três anos e depois se matar. Então uma semana depois, ele cumpriu com o que prometeu, dentro de um ônibus da empresa que ele trabalhava. Ele só não matou a criança, a filha deles, mas ela presenciou absolutamente tudo. Então, esse fato me chocou bastante e no dia em que ocorreu o feminicídio em que ele deu três facadas no pescoço da mulher, ele foi solto na audiência de custódia.

RIOS DE NOTÍCIAS: Qual o perfil das mulheres que procuram a Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher?
Patrícia Leão: Não existe um padrão. Nós atendemos todas as classes sociais e tipos de mulheres potenciais vítimas de violência doméstica.
RIOS DE NOTÍCIAS: Existe um padrão de quem pratica a violência doméstica e familiar?
Patrícia Leão: Também não existe um perfil de abusador. Tem desde o grande empresário ao morador de rua, tem de tudo. Então, todo homem, principalmente aqueles que a gente acha que é um bom pai, bom profissional no seu local de trabalho, uma pessoa acima de qualquer suspeita, mas em casa ele é um agressor de mulher.
RIOS DE NOTÍCIAS: Quando a mulher chega na delegacia, quais são os procedimentos adotados?
Patrícia Leão: Primeiramente, ela tem que reconhecer que está sendo vítima de violência doméstica. A mulher, às vezes, demora tanto tempo para procurar ajuda porque nem ela mesma consegue identificar e se ver como vítima. A partir do momento que ela consegue constatar que está sendo vítima de violência, ela procura a delegacia, registra o boletim de ocorrência e nós, imediatamente, caso ela tenha interesse, solicitamos a medida protetiva. O juiz tem até 48 horas para decidir pelo deferimento ou não dessa medida protetiva. Após isso, as duas partes tomam ciência e essa medida protetiva passa a valer [a medida é uma ordem judicial que visa proteger pessoas em situação de violência doméstica e familiar]. Então, nós instauramos o inquérito e encaminhamos para a justiça.

RIOS DE NOTÍCIAS: Para as mulheres que não têm condições, por alguma razão, de voltar para casa, o que acontece? Elas ficam em algum lugar de acolhimento?
Patrícia Leão: Nós temos uma rede de proteção. Até mesmo porque não basta só tirar o agressor do lar, a gente tem que restabelecer a dignidade dessa mulher que foi perdida dentro dessa relação. Então, na rede, nós temos o Serviço de Apoio Emergencial à Mulher (Sapem), que é um serviço fornecido pelo Governo do Estado do Amazonas e fica ao lado da delegacia.
RIOS DE NOTÍCIAS: E quais são os serviços oferecidos pelo Sapem?
Patrícia Leão: No Sapem, ela [mulher vítima de violência] tem o acompanhamento jurídico, assistencial e o psicológico. E caso ela não possa voltar para casa, tem o abrigo também, aonde ela vai em um primeiro momento ser acolhida até se sentir apta a ser inserida novamente na sociedade.

RIOS DE NOTÍCIAS: Na sua visão, qual a importância da Lei Maria da Penha para a execução do seu trabalho de proteção às mulheres?
Patrícia Leão: Foi um grande avanço na conquista dos direitos da mulher porque, até 2006, que foi o ano que essa lei foi promulgada, qual era o entendimento que se tinha até então, que “em briga de marido e mulher, ninguém metia a colher”. Então, entendia-se que o que acontecia ali dentro da casa era um ambiente privado, então a gente não podia intervir. E com a Lei Maria da Penha, nós desconstruímos esse ditado aí, agora a gente tem que meter a colher sim, a gente tem que denunciar sim, tem que tentar tirar essa mulher desse ciclo de violência.
RIOS DE NOTÍCIAS: Aqui no Amazonas, existe a Ronda Maria da Penha. Como isso contribui com a proteção dessa mulher vítima de violência?
Patrícia Leão: Primeiro, ela [a mulher vítima de violência] precisa querer ser ajudada porque o que acontece muito é nós temos os mecanismos de proteção, só que, às vezes, a própria mulher não aceita. Por exemplo, nós também trabalhamos em parceria com a Ronda Maria da Penha e as mulheres, absolutamente 100% que aceitaram entrar no programa, todas tiveram êxito no cumprimento dessa medida protetiva. O que isso quer dizer? Que o agressor não se aproximou dela porque a Ronda Maria da Penha faz esse trabalho de fiscalização das medidas protetivas. Então, com esse trabalho preventivo, de acompanhamento, de fiscalização, a gente consegue garantir a proteção dessas mulheres. Agora, os outros casos de descumprimento das medidas protetivas, é porque a mulher não quis entrar no programa. A gente precisa também que a mulher nos ajude, para que o Estado consiga dar a proteção que ela precisa.

RIOS DE NOTÍCIAS: Em casos que a vítima volta a conviver com o agressor, esse retorno pode ser devido a condição econômica e emocional dessa mulher?
Patrícia Leão: Olha, o que eu tenho observado é que não existe um único motivo. Todos os dias eu consigo verificar uma dependência nova. Porque antes eu achava que era só financeira, emocional, que era medo de perder a guarda dos filhos, e não é. Existem inúmeros motivos que elas relatam, que fazem com que ela permaneça dentro desse ciclo de violência. A grande maioria é a dependência econômica e financeira porque muitas vezes acontece a questão do machismo, do patriarcado, em que o homem não deixa a mulher estudar ou trabalhar, aí ela depende dele economicamente e, consequentemente, ela tem medo de perder o sustento dos próprios filhos, medo de perder a guarda por não ter como sustentá-los. Então, ela permanece dentro dessa relação abusiva. Às vezes, os homens não sabem que estão cometendo uma violência de tão enraizado e estrutural que é. Para eles, é tudo muito natural. É importante que esses homens busquem informação, conhecimento, para haver esse processo de desconstrução do machismo. Então, é importante até mesmo para que eles possibilitem um mundo com menos violência.
RIOS DE NOTÍCIAS: Delegada, qual é o seu sentimento em relação aos casos que chegam até você?
Patrícia Leão: É bem trabalhoso, é cansativo, mas quando a gente consegue ver uma mulher saindo de um ciclo de violência, como já aconteceu, de várias mulheres vindo depois aqui agradecer porque conseguiu sair, porque agora está bem… Então, tudo isso nos motiva, tudo isso faz com que a gente continue. Mesmo sendo um trabalho bem difícil, mas acaba nos motivando a continuar a ajudar até mesmo porque a gente sabe que quando elas chegam aqui é porque elas já estão no fundo do poço. Geralmente, quando elas chegam aqui elas não conseguem nem organizar as ideias para dizer para a gente o que está acontecendo, então a gente tem que ir ali adivinhar para poder tentar ajudá-las. Depois que saem do ciclo de violência, quando elas chegam aqui, já tem totalmente um semblante diferente, você vê que a pessoa já está com vida de novo. Então, isso é gratificante.
RIOS DE NOTÍCIAS: Que mensagem você, enquanto mulher e Delegada das Mulheres, gostaria de deixar neste Dia Internacional delas?
Patrícia Leão: Nós já conquistamos e passamos por muitas coisas, mas ainda precisamos enfrentar e acabar com a violência. Os números de denúncia só aumentam porque nós fazemos esse trabalho de conscientização, de prevenção, de levar conhecimento da Lei Maria da Penha, quais são os tipos de violência, então isso tem feito com que as mulheres busquem ajuda. Ao menor sinal de violência psicológica, de humilhação, de constrangimento, tentem sair desse ciclo de violência, procurem ajuda. Se não conseguirem vir sozinhas, procurem uma amiga, um parente, para trazer até a delegacia, solicitar sua medida protetiva, para a gente conseguir acabar com essa violência contra a mulher.