Vívian Oliveira – Rios de Notícias
MANAUS (AM) – A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir a desqualificação de mulheres vítimas de crimes sexuais em audiências judiciais e investigações policiais “é um grande avanço na busca pela eliminação da ideia de que uma mulher independente tem culpa das agressões que sofre, sejam elas morais, sexuais ou políticas”, declarou a juíza Lídia Carvalho, titular da 4ª Vara Cível da Comarca de Manaus e Ouvidora da Mulher do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE/AM).
“Como magistrada, tenho o novo entendimento da suprema corte como mais um significativo avanço na concretização do próprio cerne da Constituição de 1988: um Estado democrático que assegura o exercício dos direitos, das liberdades, garante a segurança de seu respeito e visa ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça como valores supremos da sociedade”
Lídia Carvalho, juíza
Pela decisão, proferida na última quinta-feira, 23/5, a vida sexual pregressa da vítima não poderá ser utilizada como argumento para desqualificação moral por policiais, advogados e juízes durante depoimentos em delegacias, audiências e decisões judiciais em todo o país.
Em entrevista ao Portal RIOS DE NOTÍCIAS, Lídia Carvalho destacou que a medida reforça o combate às práticas de discriminação e violência de gênero, alinhando-se aos avanços nas questões de direitos fundamentais.
“A decisão se mostra de suma importância no contexto brasileiro atual, em que as questões identitárias estão sendo mais difundidas e debatidas e a busca por esses direitos mais recorrente no Judiciário”, destacou a juíza ao riosdenoticias.com.br.
“Vale ressaltar que os ministros fixaram a tese de que é inconstitucional a prática de desqualificar a mulher, vítima de violência, durante o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e também de demais crimes, englobando também casos de violência doméstica e política“, complementou.
Ela acrescenta que a medida tem um impacto educativo para jurisdicionados, ao proporcionar acesso à informação precisa e de qualidade sobre os direitos garantidos pelo ordenamento jurídico.
“É um excelente exemplo da função institucional do Poder Judiciário que, na busca pela pacificação social dos conflitos, também tem o dever de educar os jurisdicionados. Além disso, também auxiliará na busca pela efetiva responsabilização dos agressores, cumprindo o Judiciário o seu papel garantidor concretizador dos direitos fundamentais”, pontuou.
Lídia Carvalho destacou que a decisão concretiza a isonomia, assegura um tratamento justo às vítimas de violência e fortalece a confiança das vítimas no sistema de justiça e encoraja outras mulheres a denunciarem casos de violência.
“Não se trata de criar uma categoria de sujeitos imunes parcialmente à atividade inquisitiva do Estado. Antes, é o Estado-juiz, agindo para concretizar a isonomia, ao impedir que a evidente disparidade de tratamento social para estas vítimas não se reflita no plano processual/institucional”, enfatizou Carvalho.
Revitimização
A defensora do pública do Amazonas, Emilly Santos, também contribuiu para o debate e levantou um ponto importante ao abordar situações de revitimização, que é frequente em delegacias, quando uma mulher, vítima de violência, busca ajuda. Para ela, a decisão é um marco na promoção da igualdade de gênero e na proteção dos direitos humanos, além de colocar a dignidade da vítima em primeiro plano.
A defensora lembra a ministra Cármen Lúcia, relatora do caso e única ministra do STF, que afirmou que “frases cruéis e perversas” são ditas contra mulheres em depoimentos realizados pela Justiça e em delegacias.
A Revitimização ocorre quando a vítima continua a sofrer de forma repetida e prolongada, mesmo após a violência inicial ter cessado. É a sistematização da violência.
“Por exemplo, dentro da delegacia de polícia, quando a mulher vai fazer uma denúncia, é questionada com perguntas como ‘mas que roupa que você estava usando na hora que isso aconteceu?’. Então, os julgamentos atuais têm perspectiva de gênero e não tampam os olhos para a realidade e enxergam um machismo, que é estrutural, e que ele deve ser evitado”
Emilly Santos, defensora pública
Segundo a defensora pública, o julgamento da ADPF 1107, que impede perguntas que desqualifiquem a vida pessoal, o modo de viver ou a vida sexual pregressa da mulher, foi recebido positivamente por operadores do direito.
“A prática de desqualificar a mulher durante um julgamento é recebida de forma muito favorável por juristas, advogados, defensores, promotores e juízes. Isso porque uma primeira ideia que se poderia ter é de que haveria algum tipo de cerceamento da defesa da pessoa que está sendo acusada de um crime, de violência sexual ou algum outro tipo de violência contra a mulher”, analisou.
Emily Santos explica que o foco de um processo criminal deve ser o crime cometido e a pessoa acusada, não a vida da vítima. Ela ressalta que a decisão evita que mulheres sejam desqualificadas por questões que não têm relação direta com o crime.
“Trata-se de colocar num patamar de igualdade, de dignidade a vida daquela mulher que sofreu uma violência e impede que qualquer pessoa que participe do processo, seja o juiz, defensor, ou promotor façam perguntas que desqualifiquem a sua vida, o seu modo de viver, sua vida sexual pregressa. A vida da mulher não importa para a decisão de um processo criminal; o que importa é o crime que foi cometido”, afirmou.
Emily Santos ressalta que a decisão do STF reflete uma mudança importante nos julgamentos, que agora consideram a perspectiva de gênero e reconhecem o machismo estrutural presente na sociedade.
“A inconstitucionalidade, que é não desqualificar a mulher durante um processo criminal, acompanha o que vem ocorrendo nesses novos julgamentos, do STF e de outros tribunais do Brasil, que consideram a igualdade de gênero e entendem a exitência do machismo estrutural. Agora, durante um processo, ela não pode ser revitimizada, ou seja, aquelas pessoas que deveriam estar ajudando não poderão fazê-la sofrer novamente”, explicou.
A defensora também menciona a importância do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero, que deve ser seguido por todos os envolvidos em um processo, incluindo juízes, promotores, defensores e advogados, que visa garantir que as vítimas de violência sejam tratadas com respeito e dignidade.
“Essa decisão é totalmente adequada para a nossa sociedade e para esse momento, em que a gente não apenas convive com violências, preconceitos e discriminações, mas também fala sobre isso para que melhoremos como sociedade”, concluiu.