Vívian Oliveira – Rios de Notícias
MANAUS (AM) – Hollywood, o coração da indústria cinematográfica mundial, enfrenta um momento de convulsão enquanto roteiristas e atores unem forças em uma greve que já se estende por mais de 110 dias. Iniciada no início de maio, essa greve vai muito além das reivindicações tradicionais de melhores salários e royalties justos por parte das plataformas de streaming. Um tema emergente no centro dessa luta é o uso cada vez mais disseminado da Inteligência Artificial (IA) nas artes, levantando questões críticas sobre a autenticidade e o futuro da criação artística.
A greve se destaca por sua dimensão histórica, marcando uma das primeiras manifestações significativas da indústria contra a crescente influência da IA. Os roteiristas, que têm sido a voz criativa por trás de inúmeras narrativas envolventes, expressam preocupações profundas de que a automação proporcionada pela IA ameace não apenas a sua subsistência, mas também a essência da arte que eles produzem.
Além disso, o sindicato dos atores de Hollywood, a Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists (SAG-AFTRA), aderiu à greve, sublinhando o medo de que a IA não só substitua roteiristas, mas também atores, criando um cenário onde imagens podem ser replicadas sem autorização ou compensação adequada.
O Portal RIOS DE NOTÍCIAS realizou entrevistas com três especialistas do campo audiovisual em Manaus, os quais compartilharam suas visões, análises, impactos observados e possíveis mudanças na produção nacional e regional. Um consenso entre eles é a importância do reconhecimento adequado para os profissionais das artes, uma questão em que todos concordam que há uma carência na classe em geral. Confira!
Reconhecimento
Pâmela Eurídice, a jornalista com sólida experiência e conhecimento na área cinematográfica e integrante e do Coletivo Elviras de Mulheres na Crítica Cinematográfica, traz uma perspectiva sensível sobre a greve e seu possível impacto no cenário audiovisual brasileiro e, mais especificamente, na região amazônica.
Ela aponta para a incerteza em torno da evolução da indústria cinematográfica na região, enquanto destaca a importância de estabelecer um ambiente justo para os profissionais criativos. Sua visão reflete um compromisso com a justiça e a equidade para todos os envolvidos na produção cultural.
Pâmela sustenta que as reivindicações dos grevistas são justas e necessárias, pois refletem a preocupação com a precarização da arte e a substituição humana por tecnologia.
“A utilização indiscriminada da IA ameaça a autenticidade e a originalidade do processo criativo, além de prejudicar a remuneração e o reconhecimento dos profissionais do setor”
Pâmela Eurídice, jornalista
Ela enfatiza, ainda, que apesar da ausência de uma indústria cinematográfica comparável a Hollywood na região, é crucial considerar como uma indústria potencialmente embrionária no Amazonas pode se organizar de forma justa para os profissionais em todas as áreas da cultura e da arte.
No entanto, Pâmela também direciona a atenção para as implicações da greve no panorama nacional. Ela chama a atenção para a desvalorização dos profissionais do audiovisual e a maneira como os estúdios tratam os atores e roteiristas.
“É essencial compreender que esses profissionais são como qualquer outro trabalhador, vivendo da remuneração por seu esforço criativo. O modelo em que os estúdios ficam com a propriedade da imagem e voz dos atores após uma única diária de trabalho, privando-os de futuros ganhos provenientes de reexibições desvaloriza a profissão”, disse.
Falta de originalidade
Já Lucas Aflitos, Mestre em Sociedade e Cultura no Amazonas pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e crítico de cinema pelo site CineSet, traz uma perspectiva ponderada sobre as mudanças no mundo do cinema. Ele reconhece a importância da evolução, desde que essa evolução seja em benefício do coletivo e respeite a autenticidade.
Aflitos critica a falta de originalidade na indústria, destacando a necessidade de trazer frescor às narrativas.
“Eu acho perigoso o uso da IA de maneira errada. As pessoas das artes se acham usados e usurpados quando sua criatividade é substituída por máquinas. Não há qualquer possibilidade de uma máquina substituir a profundidade e a autenticidade trazida pelos roteiristas e atores humanos. As empresas por trás dessa tecnologia são bilionárias e é preciso pensar no agora antes que seja tarde”
Lucas Aflitos, crítico de cinema
No que diz respeito ao contexto de Hollywood, Aflitos reconhece a necessidade de inovação e originalidade. Ele aponta que a indústria cinematográfica tem sido inundada por filmes de heróis e recorrências, perdendo a “frescura” e a novidade que podem impulsionar uma narrativa. “Por que o filme ‘Barbie’ é um sucesso absoluto? Devido à sua capacidade de refletir as questões atuais, um fator crucial na atração de audiências”, destacou.
O crítico de cinema relembrou o pioneirismo de figuras como o ator Antônio Fagundes, que há anos debate a ausência de lucros pela reprise de suas atuações em novelas.
“Recentemente, a atriz a Maria Zilda também falou que ganhou cerca de R$ 2 pela reprise de uma novela que participou no canal Viva. Entende o absurdo? É disso que a greve se trata, de direitos. E embora a realidade brasileira possa diferir da de Hollywood, é um momento oportuno para debater e movimentar a indústria cultural no país”, destacou.
Reflexos a Longo Prazo
Para Camila Henriques, a greve é mais do que justificada. A jornalista, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), compartilha uma visão crítica e sensível sobre as demandas dos profissionais do audiovisual.
Henriques destaca que o debate sobre a compensação financeira por reprises de novelas, por exemplo, não é novo, mas ganha ainda mais relevância com a ascensão dos streamings e o consequente aumento da exposição das produções.
“Sou totalmente a favor da greve. Esse não é um debate novo. A compensação financeira por reprises de novelas aos atores e atrizes, por exemplo, é algo sempre muito discutido, principalmente depois que o canal Viva foi criado para a reprodução de clássicos da teledramaturgia, com reprises que antes estavam restritas a uma faixa de horário na Globo. (…) Com a chegada dos streamings, o sucateamento das funções do audiovisual ficou evidente, à medida que os estúdios buscam mais rapidez e produções mais econômicas, afetando especialmente as equipes de efeitos visuais em superproduções hollywoodianas”
Camila Henriques, jornalista e crítica cinema
Camila Henriques salienta a importância da adesão do Sindicato dos Atores e enfatiza que os profissionais são frequentemente o rosto das produções. A ausência deles em eventos como tapetes vermelhos, talk shows e divulgações nas redes sociais pode afetar a promoção dos filmes.
A jornalista também destaca que, embora haja atores e atrizes que recebam salários elevados, a maioria enfrenta dificuldades financeiras quando as atividades são suspensas, principalmente devido às práticas dos estúdios.
“Para cada Julia Roberts, há milhares de atores que não têm como manter suas casas sem poder trabalhar. E aí friso que isso é total culpa da forma com que os estúdios tratam e trataram esses profissionais. Como exemplo, o escaneamento de rostos de atores para que eles possam ser substituídos por Inteligência Artificial. E é difícil não ser pessimista. Ainda que ocorra acordo e as greves sejam encerradas, as perspectivas a longo prazo são desanimadoras, porque a desvalorização de quem faz arte, em qualquer escala, é cada vez maior”, conclui.
Na última quinta-feira, 17/8, novas reuniões e discussões ocorreram enquanto o setor enfrenta desafios significativos decorrentes da paralisação. Executivos de gigantes da indústria, como Ted Sarandos (Netflix), David Zaslav (Warner), Donna Langley (Universal), Dana Walden e Alan Bergman (Disney), também estão programados para se juntar às discussões visando encontrar medidas concretas para a negociação.
Em um cenário onde a indústria do entretenimento está em rápida transformação devido à tecnologia, a greve dos roteiristas e atores de Hollywood emerge como um grito unificado em defesa da criatividade, originalidade e direitos dos profissionais das artes. Enquanto opiniões variam sobre os desdobramentos a longo prazo, uma coisa é certa: a batalha está longe de terminar.