Vitória Freire – Portal Rios de Notícias
MANAUS (AM) – “As cabeças levantadas, máquinas paradas, dia de pescar, pois quem toca o trem para frente, também, de repente, pode o trem parar” – entoa o artista Chico Buarque, em ‘Linha de Montagem’, canção inspirada na paralisação dos metalúrgicos, que ocorreu entre 1978 e 1981, na Região do Grande ABC, em São Paulo.
Na época, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estava à frente do Sindicato dos Metalúrgicos no ABC paulista, sendo um dos indiciados pela Lei de Segurança Nacional, em vigor no período da Ditadura-Civil Militar.
Preso por 31 dias no Departamento de Ordem Polícia e Social (Dops) com outros dez dirigentes que reivindicavam estabilidade e reajuste salarial para trabalhadores, Lula se estabeleceu como uma figura-chave no que diz respeito à consciência política operária.
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“O movimento operário do ABC, no qual Lula teve participação importante, foi fundamental para o tensionamento social em favor da abertura política. Ou seja, nós falamos de alguém que viveu intensamente esse processo”
Leonardo Claudiano, historiador.
Diante das movimentações reconhecíveis, que Lula liderou e integrou, no decorrer da busca pela instauração da democracia no país, se torna discutível a afirmação do político, em que disse não querer “remoer o passado”, ao ser questionado sobre qual deveria ser a posição das Forças Armadas em relação às eventuais celebrações dos 60 anos do Golpe Militar, no próximo 31 de março.
A fala ocorreu durante uma entrevista concedida na última terça-feira, 27/2, ao jornalista Kennedy Alencar. Durante o diálogo, Lula sustentou que os atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro geram maior inquietação do que a evocação da tomada de poder pelos militares em 1964.
Críticas
Na quarta-feira, 28, cento e cinquenta grupos participantes da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia divulgaram uma nota tecendo críticas à declaração de Lula, convidando o Governo Federal e a sociedade civil a refletirem acerca da questão (confira o documento abaixo).
As entidades defendem, igualmente, ser impossível falar dos ataques golpistas às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023 sem mencionar o Golpe Militar de 1964.
“Falar sobre 1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade, que continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país soberano, capaz de produzir desenvolvimento econômico e socioambiental com inclusão e democracia. É, portanto, falar sobre o futuro (…) Não aceitaremos que, mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para poder contemporizar com os militares.”
Trecho de nota divulgada pela Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.
A Coalizão também considera “urgente” a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos – promessa realizada por Lula à esquerda brasileira. A documentação referente à proposta de decreto para a recomposição da comissão tramita na Casa Civil há um ano.
“O processo de reparação não foi plenamente reconstruído: a Comissão de Anistia está julgando menos que o governo Bolsonaro, não retomou os projetos de memória das gestões passadas, como: Marcas da Memória, Caravanas da Anistia, Memorial da Anistia, Clínicas do Testemunho”, traz outro treco da nota divulgada pela Coalizão.
O ‘nunca mais’ depende disso
Para o historiador Leonardo Claudiano, que também é um dos coordenadores do Grupo de Estudos Literatura e Ditaduras (GELD), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a redemocratização no país foi comandada pelas Forças Armadas e por grupos cujos interesses estavam ligados à repressão.
“O processo [de redemocratização] ocorreu de forma lenta, gradual, com base em uma reconciliação imposta e sem a devida punição aos agentes de Estado que praticaram crimes de lesa-humanidade.
Esse passado repercute em nossos dias, seja pela manutenção de instituições oriundas do período ditatorial, seja pela disputa em torno da memória.
O passado não é algo petrificado no tempo. Ele é ativo, está em movimento e não podemos, de forma alguma, negligenciá-lo. O ‘nunca mais’ depende disso.”
Leonardo Claudiano, historiador.
Confira a nota Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia: